Nesses últimos dias, algumas pessoas que passaram pela minha vida - seja no modo 'relâmpago' ou de modo mais intenso - se despediram desse mundo, quase todos de forma abrupta, para outro plano (e torço muito para que todos eles caiam em um lugar bem melhor que essa terrinha de expiações e hecatombes). No mesmo dia que o cartunista Rice Araújo (que teve obituário aqui), dia 5, um sábado, faleceu minha chefe na Editora Abril, Susana Horta Camargo (1948-2025). Nascida em Piraju, no interior de São Paulo e formada em Sociologia pela USP, seguiu carreira como pesquisadora. Entrou para o Dedoc (Departamento de Documentação da Editora Abril) em seu nascedouro, tornando-se mais tarde a responsável pelo setor por mais de vinte anos, entre os anos 1980 e início dos 2000. Entre 1970 e 1977 foi casada com o jornalista Juca Kfouri, com quem teve dois filhos (Daniel e André). Na sua gestão, foram concluídas edições históricas da Editora Abril, principalmente especiais da revista Veja (edições de aniversário, 100 Anos de República, Especial Victor Civita), além da exuberante "A Revista no Brasil" (2000), com a história dessas publicações desde sua gênese no país - incluindo os anos em que foram lançadas - numa pesquisa profunda que contou com a parceria do jornalista Leonel Kaz no planejamento e direção gráfica, a edição de Ricardo Setti, Carlos Maranhão e Humberto Werneck e a pesquisa conjunta entre a Emporium Brasilis (da dupla Vladimir Sacchetta e Paulo César de Azevedo) e uma grande equipe de pesquisadores do Dedoc, sob direção de Susana. Na minha passagem pelo Dedoc (Abril Imagens), entre 1989 e 2002, a diretora do setor sempre foi a Susana Camargo, e estive presente em todos esses "corres", tanto para fechamentos de edições extras, como para especiais mais apurados. O setor estava sempre cheio e funcionava 24 horas (a famosa equipe da madrugada, que costumava atender até o notívago Jô Soares, às voltas com as pesquisas de seus livros). Foi principalmente na sua gestão, que os fotógrafos "das antigas" foram melhor remunerados pelas imagens em arquivo e o setor passou a receber um maior número de personalidades e empresas em busca de fotos e informações históricas. Fotógrafos antológicos como Pedro Martinelli, Luigi Mamprim, Milton Shirata, Claudio Laranjeira, entre tantos outros, foram mais valorizados nesse período, assim como personalidades como o goleiro Valdir Peres, a compositora Mirian Batucada, Pelé, Rita Lee, e empresas como o SBT (para pesquisas dos programas Jô Onze e Meia, Aqui Agora e Programa Livre), as agências Loducca, Talent e DM9, o Instituto Elifas Andreato (que editava a revista Almanaque Brasil), além de dezenas de pesquisadores e jornalistas do Brasil todo, frequantaram o acervo, em buscas memorialistas e jornalísticas. Foi uma época de muita movimentação na Editora Abril, no auge das matérias bombásticas sobre a família Collor, a montanha russa da economia e as primeiras campanhas políticas na volta da democracia. E Susana Camargo, com seu jeito determinado, direto e sempre com referências adicionais nas conversas, foi quem segurou com pulso firme os turbilhões e inovações dessa época rica e explosiva.

Susana Camargo
Outra colega do Dedoc, Vera Lucia Lucas Pinto, a Verinha, também se foi nesse mês de abril, no dia 18. Jornalista de formação (FMU), trabalhou na Gazeta Mercantil de 1983 a 1994 e no Dedoc Abril de 1994 a 2015, como pesquisadora. Se aposentou e passou a fazer freelas. Que baita pesquisadora de textos! Além de profissional de primeira, Verinha era daquelas amigas pra toda obra, e que lutava por uma sociedade mais justa em todas as frentes: contra o rascismo, conra o fascismo, contra o abandono e descaso para com os pets, contra a misoginia e a homofobia, contra a intolerância, contra o negacionismo ambiental. Batemos altos papos no corredor do cafezinho no Dedoc, ela sempre com um sorriso que eliminava qualquer hipocrisia próxima. Discreta até dizer chega, não disse pra quase ninguém que sofria com o câncer há algum tempo. A gente, acompanhando ela na internet, só desconfiou que ela não estava bem recentemente. Ela venceu algumas batalhas contra a doença, guerreira que sempre foi, mas dessa vez não teve como. Verinha Presente! (na segunda imagem abaixo, um evento que rola hoje, bem a sua cara, que a homenageia).

Vera Lucas
Evento de resistência que homenageia a Verinha
A outra homenagem que faço aqui é para o grande Edy Star (1938-2025). Cantor, compositor, ator, artista plástico e performer, nascido Edivaldo Souza em Juazeiro-BA, é considerado o primeiro artista da música a se assumir gay. Começou a carreira ainda criança, quando participou do programa "A Hora da Criança", da Rádio Sociedade da Bahia. Passou a infância numa ampla casa com quintal repleto de árvores frutíferas, que dividia com os livros, gibis (entre eles O Tico-Tico, Capitão Marvel e Almanaque Vida Infantil) e audições diárias do cancioneiro na Rádio Nacional e Mayrink Veiga. Outra paixão era o desenho, que o fazia ficar horas em cima de papéis e o fez seguir anos depois como artista plástico nas ruas de Salvador, sua primeira opção profissional (além de um breve estágio na Petrobras ). Na juventude, em Salvador, conviveu com nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil (com quem compôs "Procissão" em 1964, parceria só reconhecida décadas depois) e Tom Zé, além da "turma do rock', ancorada por Waldir Serrão e participação do tecladista Thilde Gama e um imberbe Raul Seixas, entre outros. Depois de se apresentar em diversas cidades nordestinas com o grupo Companhia Baiana de Comédias, se instalou em Olinda. Em Recife, entre os anos 1966 e 1968, segundo o jornalista José Telles, Edy ingressou no Coletivo Construção, que entre outros, incluía entre os membros Teca Calazans (conhecida na época como Terezinha), Marcelo Melo, Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos. Foi com eles que em 1967, participou do incensado espetáculo "Memórias de Dois Cantadores" e teve seu talento reconhecido, fazendo com que fosse contratado para a TV Jornal do Commercio de Recife. Em 1968, Edy e Naná desceram para o Rio de Janeiro, para defender a música "Dia Cheio de Ogum", de Capiba, no Festival O Brasil Canta no Rio, da TV Excelsior, que ficou entre as doze finalistas e se tornou a primeira gravação em disco de Edy. Ao voltar para a Bahia, virou apresentador do programa "Poder Jovem" na TV Itapoan, e até ficou bastante tempo nessa função, até reclamar de salários atrasados ao vivo, em 1970 e ser sumariamente demitido. Reencontrou Raul Seixas (1945-1989), que o convidou para ser colaborador na CBS (gravaria por lá um compacto produzito por Raulzito), e junto com Raulzito, Mirian Batucada (1946-1994) e Sergio Sampaio (1947-1994), fez o anárquico "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10". O disco não fez sucesso na época - foi recolhido pela CBS por ter ter sido feito na calada da noite, sem o consentimento dos 'maiorais' da gravadora - mas virou cult com o passar dos anos. Se apresentando como performer desde então em espaços marginais na Praça Mauá, no centro do Rio, na Lapa e também em boates mais sofisticadas na Zona Sul e esporadicamente em São Paulo, Edy seguiu com a música, lançando logo depois de sua participação de destaque no musical "The Rocky Horror Show" o LP "Sweet Edy", de 1974, um petardo do glam-rock que não vendeu muito, mas tambem entrou para o rol dos discos 'cults". Depois de se dividir entre o teatro, o cinema e a televisão, se mudou para a Espanha em 1990, como produtor e performer e lá ficou por quase 20 anos. Retomou sua carreira musical no Brasil com o álbum "Cabaré Star' em 2017 (produzido por Zeca Baleiro), e nos últimos anos, foi 'resgatado' pelo público jovem e teve sua importância artística finalmente reconhecida nas mídias. Em 2023 saiu o álbum "Meu Amigo Sérgio Sampaio", logo depois do livro de memórias "Diário de um Invertido: Escritos Líricos, Aflitos e Despudorados (Salvador, 1956-1963)" (Editora Noir). Não convivi pessoalmente com Edy, mas acompanhei sua carreira desde sempre e troquei figurinhas nas redes. No ano passado, estava andando na Rua da Consolação, quando o encontrei em frente um bar. Estava com muita pressa, mas troquei algumas palavras com aquele jovial senhor de 86 anos, irreverente, afiado e contestador como sempre foi em sua vida inteira.
Abaixo, uma foto inédita de Edy Star, que eu adquiri em um leilão, em 2019. No verso da foto PB lê-se: "Boate Number One - Edy Star. UH Revista". O crédito é do fotógrafo Mozart Trindade, do Última Hora e a data, 14/12/1973. Quando o mestre Edy Star viu essa foto em um grupo fechado em que postei, comentou: - Foto vendida em leilão? Gentem, eu tou famoso...kkkk".