No encarte do LP original Os Borges, Seu Salomão, patriarca da família (ver post abaixo), faz um depoimento emocionante que traz revelações arrebatadoras e pistas preciosas sobre cada um dos filhos. E claro, todo o seu amor à Dona Maricota. mãezona dessa renca do barulho.
"Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Trinta anos de jornalismo não me tornam fácil este depoimento pessoal, na verdade tão difícil quanto o início da "composição" de minha série de onze filhos e sete frustrações, em "parceria"com Maria Fragoso Borges, ex-Maria da Conceição Fragoso. Conceição para os íntimosFragoso para os nem tão íntimos e Maricota, para mim que durmo com ela, todas as noites, há mais de quarenta anos...
A idéia de tomar Maricota por companheira , por toda a vida, estalou no meu cérebro e repercutiu no meu coração numa certa noite de junho. Eu a conheci desde os bancos escolares, mas nem a título de pilhéria admitia a hipótese de que ela pudesse vir a ser minha esposa . Na tal noite , porém, depois de dançarmos e conversarmos, numa festinha de aniversário na casa de meus pais, onde eu vivia, decidi de imediato,que seria ela ou ninguém. Amor puro, profundo, repentino.Eu sabia que não se tratava de paixão e sabia, também, que o inesperado sentimento era recíproco, irreversível. E ela também sabia, embora não tivéssemos trocado uma só palavra sobre isto. Assim , dias depois, com absoluta convicção e tranqüilidade, eu disse à minha mãe: -A senhora sempre me aconselhou a procurar uma moça igual à Conceição, quando eu pensasse em casamento, não foi? Pois, bem- vou me casar com a própria Conceição. E ante o espanto de Paulina Borges, minha mãe, arrematei: Conceição ainda não sabe, mas já decidi que será ela ou ninguém. Dito e feito: menos de um ano depois, em maio, Mês de Maria, estávamos casados. Eu era, então, sargento da Polícia Militar de Minas Gerais, 22 anos; ela, normalista quase professora, 18 anos. Algo indefinível dentro de mim sempre me impregnou de uma certeza, total e emocional, de que eu seria pai de muitos filhos, oito, no mínimo. Nem os cinco anos iniciais de malogros abalaram esta certeza, porque na realidade, há coisas que a gente sabe, mas não sabe porque sabe. E esta pródiga paternidade era uma delas . Não obstante, exatamente dez dias depois de havermos comemorado o quinto aniversário de casamento, quando Marilton, o primogênito nasceu, "inaugurando o marcador"e chorando muito, como qualquer recém-nascido que se preze, posso garantir que chorei muito mais do que ele, como qualquer pai coruja que se preze. Dois anos e oito meses depois, nasceu Márcio (Marcinho). E logo depois, numa sucessão muito rápida, foram entrando no palco da vida pela ordem, Sandra , Sônia, Sheila , Salomão (Lô Borges), Marcos (Yé), Solange, Suely (Dodote), Marcelo (Telo Borges) e Mauro(Nico). Claro que todos choraram e eu, mais do que todos eles, chorei. Maricota e eu ficamos simplesmente perplexos, apatetados, com a precocidade musical do Marilton, que aos quatro anos já cantava no rádio e começava a maltratar um cavaquinho e depois um violão, e depois um piano, e depois sei lá mais o que . Adolescente, desandou a compor e a criar acordes e harmonias ao piano e ao violão. "Trem "de doido. Tão atordoados ficamos que nem notamos que o menino Márcio vinha escrevendo às escondidas para uso próprio, mini-contos, crônicas, poesias, revelando espantosa facilidade para escrever sentimentos, situações, coisas e tipos humanos. Era demais pra mim. Eu me considerava jornalista razoável, mas reconheci, até com certo despeito profissional que o menino Márcio Borges estava começando por onde eu nem havia chegado... "Trem "de doido também. E as revelações domésticas foram surgindo - eu diria- aos borbotões. Todo mundo tocando alguma coisa, todo mundo fazendo música, todo mundo cantando. Pelo simples prazer de fazer música.E não era também o que a Maricota fazia quando jovem - uma tremenda cantora, lendo música como quem lê jornal ? E não fazíamos, ela e eu, duetos aceitáveis e até mesmo bons ? E nossos ancestrais e colaterais - maestros, cantores, instrumentistas ? Que culpa tinham os meninos agora ? Não havia remédio para aquela confusão toda. Tínhamos que aguentar a barra e até reclamações dos vizinhos. E tudo ficou mais complicado, quando resolvemos comprar um piano.Com o tempo a gente se habitua, e fomos levando. Lô e Yé tocando e cantando na rua com Beto Guedes e outros meninos; Marilton, ainda imberbe, tocando e cantando em casas noturnas, onde provavelmente ficou conhecendo Wagner Tiso e Milton Nascimento; Márcio escrevendo freneticamente com aquela sua desajeitada mão esquerda. Solange também cantando e já de violão em punho; Telo e Nico batucando piano e maltratando violão. E outros instrumentos, que apareciam lá em casa como que por encanto.Os vizinhos tinham razão. Maricota e eu num estado de permanente atordoamento tentando compreender o que é que estava acontecendo em nossa casa. Quando paramos um pouco para respirar - após vinte e dois anos de procriação, dezoito gestações ao todo - quando Maricota começou a perder aquela inefável e quase indefectível silhueta de mulher sempre grávida - um ao colo, outro no ventre - tivemos uma consciência mais nítida e mais assustadora de que nossa casa estava povoada de gente que só pensava em música, raramente em qualquer outra coisa. Marilton, Márcio, Lô, Yé, Solange, Telo e Nico eram destaques especiais na arte de roubar a paz e o silêncio. Sandra, Sônia, Sheila e Dodote enriqueciam a barulheira, cantando, e ouvindo discos, geralmente no volume de som mais alto possível. Dose. Os de casa já bastavam. Mas aí, outros maníacos musicais começaram a "pintar", como que por mero e "interessante" acaso. Primeiro veio o Milton, meio acanhado, meio sem graça. Helvius Vilela veio com ele ou antes dele? Não estou bem certo. E a patota foi crescendo- Wagner Tiso ( Beto já estava incorporado) Rubinho, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Martinha,até o Nelson Ned e mais uma porção de gente. Naná Vasconcelos sempre brindando a vizinhança com sua incrível poliritmia de garfos, pratos e panelas. O que quer que caisse em suas mãos . Milton Nascimento era "crooner" apenas, até que Marcinho conseguiu convencê-lo de que ele seria tão bom compositor quanto cantor. Daí por que Márcio Borges foi o primeiro parceiro de Milton . De música em música, de esquina em esquina, surgiu "Clube da Esquina" uma sequência harmônica que Lô fez na esquina de nossa casa ; Milton ouviu, gostou, colocou melodia; Marcinho pôs letra e título; e , algum tempo depois , ficou sendo o nome do famoso álbum de Milton e Lô, primeiro sucesso de Bituca, em disco, pois, a essa época, ele já havia se consagrado com "Travessia ", dele e de Fernando Brant , num festival. Até hoje ninguém perdeu o gosto pela música - estão todos em atividade. Marilton toca piano e canta , à noite , faz televisão , propaganda , durante o dia; Márcio, às voltas com as letras, em todos os sentidos, e também compondo música às ocultas, como é de seu feitio; Lô , Solange e Telo, juntos no LP "Via Láctea" e nos "shows". Um lembrete: a música "Vento de Maio" foi feita pelo Telo, com letra de Márcio, para variar. E os outros ? Os outros vão curtindo música sem pretensões e sem compromissos. Uma casa alegre, a nossa , sem dúvida, mas, sobretudo porque aprendemos a não cultivar nem dor, nem ódio, nem autopiedade, e estamos sempre de olhos abertos para o lado bom e bonito das pessoas e das coisas. E ai de nós se não fôssemos assim. "
Texto escrito por Salomão Borges, extraído do encarte do álbum "Os Borges", 1980, EMI Odeon.
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