Foto: Celso Brando |
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Dia de extrema tristeza para mim, por múltiplos motivos contidos em um só: morreu João Palma. Morreu meu amigo, com quem convivi por 37 anos apesar do temperamento difícil, explosivo, de pavio curtíssimo. Morreu meu grande ídolo da bateria, com quem tive a honra de trabalhar em shows e gravações. Morreu, com ele, o que restava de um Brasil sutil, sofisticado, cosmopolita. O mesmo Brasil que Tom Jobim, João Gilberto e Luiz Bonfá também sonharam.
Nosso país deu ao mundo alguns dos maiores bateristas da história da música: Palma, Dom Um Romão, Edison Machado, Milton Banana, Airto Moreira, Helcio Milito e o único de uma geração posterior que absorveu o legado desses mestres,Zé Eduardo Nazario.
Cresci ouvindo todos eles em discos e ao vivo. Conheci pessoalmente todos eles. Milito e Banana frequentavam minha casa. Airto também, porque foi meu cunhado. Machado, conheci através de José Roberto Bertrami e assisti a seu emocionante último show (que foi no Vinicius Bar e não no People, como dizem os falsos pesquisadores). Trabalhei muito com Dom Um, gênio não só da bateria mas também da percussão, além de ser humano maravilhoso, de quem tenho infinita saudade.
Mas João Palma sempre foi meu predileto. Questão de gosto pessoal mesmo. Talvez por ser, na minha opinião, o mais "esteticamente completo" de todos, capaz de ir da mais sofisticada sutileza (que me fascinou, inicialmente, através dos LPs com Tom Jobim) ao galope incendiário igualmente presente, em doses certeiras, nos mesmos discos de Tom. Sempre perfeito, sempre de ataque certeiro.
A obra-prima "Stone Flower" ilustra isso perfeitamente: Palma vai do requinte minimalista de "Tereza, My Love" (era o único baterista que os maestros e produtores permitiam que iniciasse uma faixa dando uma "bumbada"!) ao vigor flamejante da faixa-título, empregado também em "The Mantiqueira Range" (do álbum "Matita Perê"), onde as chicotadas no prato de condução soam como tiros de caçadores numa floresta; passando pela condução jazzisticamente valseada de "Children's Games" (Chovendo Na Roseira) e pelo show de vassourinha na swingueira insuperável do samba "Brazil" (Aquarela do Brasil), talvez a faixa que mais ouvi em toda a minha vida, desde que comprei o primeiro exemplar de "Stone Flower" quando tinha 10 anos de idade.
Graças aos insondáveis mistérios do universo, do "tudão" (termo utilizado por outro João genial, o Gilberto), eu sempre vivi tão apaixonado por "Stone Flower" que acabei produzindo e/ou supervisionando e/ou escrevendo textos de encarte para diversas reedições em CD; inclusive a primeira no mercado americano. Quiseram os deuses que eu achasse as fitas originais de multi-track que estavam "perdidas" (sem identificação) no acervo da Sony/Epic, onde o acervo do selo CTI tinha ido parar por questões judiciais.
Fato que nos permitiu a ousadia de remixar o disco, me levando a descobrir que algumas faixas haviam sido encurtadas pelo engenheiro de som Rudy Van Gelder para não comprometerem a qualidade da prensagem, devido às limitações de tempo do vinil (o produtor Creed Taylor raramente deixava um "lado" ultrapassar 17 minutos). Assim me foi possível encerrar aquela maravilhosa "Aquarela" não aos 7m19s do LP, ceifando o balé do solo de Palma, mas aos 9m40s, alongando a faixa ao máximo e trazendo à tona, pela primeira vez, o improviso completo da bateria.
Conversando com Palma, descobri também que aquele havia sido um "take" de ensaio, bem à vontade, improvisado no estúdio por Jobim, Eumir Deodato (ambos tocando Fender Rhodes), Ron Carter no baixo, Palma na bateria, Airto (triângulo) e Everaldo Ferreira (caixinha de fósforo) na percussão. Mais intimista e espontâneo, impossível. Inicialmente, Creed Taylor não gostou muito. Achou a faixa longa demais. Pediu que um novo "take" fosse feito no dia seguinte, mais curto, mais compacto. Palma trocou as vassouras pelas baquetas. Deodato adicionou um arranjo para seção de cordas. Mas, na hora da mixagem, Creed mudou de idéia, optando pelo "take" original, sem cordas. O outro, que era pra ser o "oficial", foi arquivado e esquecido por todos. Menos por Palma. E por mim, que lembrei da história e não sosseguei até encontra-lo e inclui-lo no CD como bonus-track.
Por essas e outras, minhas conversas com Palma duravam horas. Era cultíssimo! Adorado por Claus Ogerman e Don Sebesky, a quem fui por ele apresentado. Quando me dava a honra de sua presença nas reuniões musicais que eu organizava, a "sessão" acabava girando em torno das gravações dele. Certa vez, num encontro ao qual estava presente Anna Carolina Albernaz, deixou a gravurista encantada ao narrar, em detalhes, a concepção de cada faixa que eu ia mostrando de seus discos com Paul Desmond, Astrud Gilberto, Michael Franks e tantos outros, durante o "terceiro set" de uma festa na qual estavam presentes também João Donato, Lisa Ono, Sergio Barroso e José Boto.
Em outra ocasião, me telefonou às 16hs perguntando se a festa estava confirmada para às 21hs. Eu respondi que sim, e ele emendou: "OK, então estou saindo agora". Naquela época, 1998, eu morava na Barra da Tijuca; ele, na Lagoa, perto do Corte de Cantagalo. Travou-se então o seguinte diálogo:
- Palma, você entendeu errado. A reunião só começa às 21hs.
- Eu sei, mas você acha que eu vou de táxi? Eu vou a pé, quero me exercitar!
- Palma, você entendeu errado. A reunião só começa às 21hs.
- Eu sei, mas você acha que eu vou de táxi? Eu vou a pé, quero me exercitar!
E assim fez como bom andarilho, caminhando por dentro dos túneis e chegando pontualmente às 21hs, para espanto dos demais convivas. Nas mãos, um saquinho com chá preto, que eu sempre prazeirosamente preparava, porque ele já não mais tomava bebida alcoólica.
Nos vimos pela última vez em 25 de Dezembro de 2015, quando fui passar o Natal no Rio. Ele estava tocando no revitalizado Bottle's Bar, no Beco das Garrafas, onde tinha iniciado a carreira tocando em trio com Johnny Alf (piano) e Tião Neto (baixo). Senti que se fechava um ciclo. Foi o fim do roteiro trágico do herói.
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