No domingo passado me senti como um daqueles privilegiados frequentadores dos saraus musicais do ap da Nara Leão lá no comecinho da Bossa Nova: fui convidado para participar de um inédito "recital" em minha cidade - São Caetano do Sul - nos moldes daqueles encontros que impulsionaram a bossa a virar o que virou. O evento particular ocorreu no ap da minha colega Marisa Dea, professora, assessora e agitadora cultural, bem perto de casa, e trouxe o excelente ator, compositor e hábil violonista João Gurgel. No esquema "passa chapéu no final", Marisa recebeu perto de uma dúzia de convidados para assistir o show intimista com repertório quase todo focado nas músicas do essencial Sérgio Ricardo - compositor, cantor, instrumentista, cineasta, ator, pintor - pai de João. Em meio à pequena mas calorosa e participativa plateia - composta por amigas da Marisa, a maioria pertencente ao professorado, mais eu, meu filho Gabriel - que anda tocando violão/guitarra com gosto - e o amigo Nilton Jorge, convidado por mim - Gurgel surpreendeu pela rapidez com que desenvolveu os bem amarrados acordes de seu pai em conjunção com as letras extensas e discursivas, entremeando cada música com análises e comentários pertinentes, principalmente sobre os temas tratados. Logo fiquei sabendo por ele mesmo que essa desenvoltura se dá pela sua experiência como artista de rua - recitando e interpretando números em ônibus e metrôs do Rio de Janeiro ( ele mora no Vidigal) - embora ele tenha confessado ser tímido por natureza. As músicas para o recital foram muito bem escolhidas, amarrando-se naturalmente uma na outra. Além de 90% das composições assinadas pelo pai, o músico adicionou à playlist a emocionante "Canoa, Canoa" ( de Nelson Angelo e Fernando Brant), um dos destaques do emblemático LP Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento (1978), duas composições do experimental e autêntico Metá Metá, grupo paulistano de muita qualidade que mistura jazz com influências africanas ( tanto na música como nas letras, com ênfase no Candomblé). Do repertório de Sérgio Ricardo, destaque para a sempre moderna "Calabouço", "A Fábrica", "Brincadeira de Angola" ( com letra do amigo poeta Chico de Assis), a ecológica "Cacumbu" e algumas composições recentes de muito entusiasmo e vibração. No final da apresentação, sua irmã e também filha de Sérgio Ricardo, Marina Lutfi, com uma voz suave e muito bem colocada, ajudou-o na interpretação de "Calabouço" e "Cacumbu" e emendou uma ótima canção do Metá Metá.
Vale lembrar que Sérgio Ricardo está com bem vividos 85 anos! Ele ia aparecer no recital dos filhos e até quem sabe fazer uma participação em algum número, mas no dia anterior sofreu uma pequena queda ( nada grave) mas que o fez declinar do convite. Fica para uma próxima! Mesmo com sua ausência, ou por isso mesmo, discorremos muito sobre sua carreira, suas composições e sua permanente insatisfação diante da injustiça e da desigualdade, o que o fez durante a vida sempre estar junto daqueles que seguram o lado mais fraco da corda. Viva Sérgio Ricardo! E que venham mais iniciativas como essa da Marisa - que está disposta a muito mais depois que fundou oficialmente seu grupo cultural independente - pois só assim conseguiremos furar o bloqueio dessas megacorporações que controlam o show business e não deixam chegar á tona manifestações culturais independentes e fora do mainstream. Esses recitais em salas, varandas, quintais ou seja lá em que cômodo for é para mim a melhor ferramenta contracultural que temos nesse momento!
Muito bom, Marcos.
ResponderExcluirQue bom que esteve por perto para contar ao público que esse tipo de manifestaçāo existe e tem representado o que há de melhor no cenário pobre da cultura nacional.
Pobre, nāo por falta de bons artistas, mas por nāo interessar à mídia a divulgaçāo daqueles que nāo se ajoelham às suas exigências.