29 de setembro de 2021

Cantos Populares do Brasil , de Sylvio Romero - Com cara de lançamento inédito, a nova edição de um clássico de 140 anos


Vejam essa: anteontem, passando pelo Park Shopping São Caetano, aqui na minha cidade, me deparo com uma feirinha de livros com preços promocionais, bem em frente à Livraria da Vila (inaugurada há pouco, surgiu no vácuo da Saraiva, que saiu da cidade, e está em situação financeira delicada). Não perco essas coisas nem se o Papa estiver me esperando na praça de alimentação. Despreocupadamente, acabei comprando um livro por 15 pilas, "Cantos Populares do Brasil", de Sylvio Romero, primeiro por que gostei da capa (design de Ana Dobón), segundo porque o tema folclore brasileiro sempre me interessa e terceiro porque esse nome do autor não me era estranho. Chegando em casa, fui pesquisar, claro. No próprio prefácio do autor ("Advertência"), há a explicação que essa coleção "Cantos Populares do Brasil" já estava pronta há seis anos, que a coleta dos cantos foi feita em Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas e em escritos de outros autores e que a obra se divide em quatro partes: "Romances e Xácaras", "Reinados e Cheganças", "Versos Gerais e "Orações", além de um apêndice de Carlos Koseritz com uma silva de Quadrinhas soltas do Rio Grande do Sul. O final dessa abertura é revelador: "Resta-nos apenas agradecer a todos aqueles que nos ajudaram nesta ímproba tarefa e, especialmente, aos senhores Theophilo Braga e Carrilho Videira, que tão brilhantemente se ofereceram para salvar das traças esta coleção, que foi repelida pelos livreiros e editores brasileiros com o mesmo horror com que se foge da peste". Aí no final o autor assina e bota a data: Rio de Janeiro, novembro de 1882. Só então me dei conta que estava com um livro na mão que teve sua origem lá no final do século XIX! Depois, folheando um pouco mais o volume, topei com uma ótima introdução de Theóphilo Braga (já citado), "Sobre a Poesia Popular do Brasil" e em seguida, enfim, com a seleção dos cantos/modinhas. A editora Principis fez um trabalho bacana de design e edição, mas tirando a orelha do livro, com um pequeno perfil do autor e um texto mínimo na última capa, contando que é um "(...), volume organizado por Sílvio Romero, um pesquisador e estudioso da nossa história. É um livro raro para todos os que se interessam pelos estudos folclóricos do Brasil.", não há pistas de que essa obra foi escrita há 140 anos ou mais - talvez para chamar a atenção de um público mais jovem. No pequeno perfil, fica-se sabendo que Sílvio Romero nasceu em Sergipe em 1851, fez Direito em Recife, radicou-se no Rio de Janeiro, onde fez sucesso como crítico literário, publicou seus dois primeiros livros em 1878, lançou anos mais tarde os famosos "Cantos Populares do Brasil", lançados em Portugal, foi membro do Academia Brasileira de Letras e faleceu em 1914. Nessa mini-bio há a confirmação de que "Cantos Populares do Brasil" era uma coleção (talvez em quatro partes, como se vê no volume completo) e que desafortunadamente, foi rejeitada - pelo menos sua primeira edição - no Brasil. Pelo que pesquisei, algumas edições posteriores de "Cantos Populares do Brasil" vieram em tomos (como na coleção Folclore Brasileiro, organizada por Câmara Cascudo e ilustrada por Santa Rosa).

Saindo um pouco do livro e pesquisando mais sobre o autor por aí, descobri que Sylvio Romero, nascido Sylvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (quando eu me refiro ao autor, coloco seu nome com y, que é como está em sua certidão. Mudar o nome das pessoas por causa de novas normas, pra mim não cabe. A Editora Principis decidiu tirar o y) foi (além de crítico), ensaísta, folclorista, professor e historiador da língua portuguesa, mas antes de tudo um grande polemista (e daí provavelmente escorraçado das rodas literárias mais requisitadas na época), justamente por não medir palavras para criticar a postura de boa parte dos escritores de sua época no Brasil, que evitavam focar seus escritos na realidade social do país, preferindo uma visão mais surreal e fantasiosa. 

Por último, o nome. Encafifei que já conhecia o nome do autor e não é que eu estava certo? Aqui em São Caetano existe uma escola tradicional chamada EMEF Sylvio Romero e esse patrono que a batizou é o mesmo Sylvio Romero de "Cantos Populares" (no site da instituição há uma boa biografia dele, inclusive citando sua viagem à Portugal em 1883 para publicar o livro de folclore). No meu subconsciente esse nome ficou gravado desde os tempos de jogos interescolares dos anos 70, quando o meu time de escola jogou basquete e futebol com a turma do Sylvio Romero. A escola foi fundada em 1950.

Depois dessas pesquisas todas, faltava achar alguma capa do livro original e acabei achando em uma antiga página de leilão a segunda edição de 1897, pelo visto, finalmente publicada em solo brasileiro (vejam lá embaixo). A capa que chamou a minha atenção no shopping abre o post. E logo aqui embaixo tem um canto popular que achei bem bonito e transcrevo na íntegra. O organizador Sylvio Romero tomava o cuidado de colocar em cada canto ou modinha o seu local de origem e quem foi o pesquisador que o catalogou primeiro (no caso desta selecionada, foi o próprio). Palmas para ele. Depois deste post, vou procurar mais coisas sobre ele (aguardem).


Quando Eu Nessa Casa Entrei

(Sergipe) 


Quando eu nesta casa entrei

Logo por ti perguntei;

Não me deram novas tuas,

Com vergonha não chorei.


Cadê a luz de meus olhos?

Cadê esta casa cheia,

Que ainda hoje não o vi

Nem na janta, nem na ceia?


Cada vez que considero,

Chego na janela e digo:

Alto céu, bonita luz,

Quem me dera estar contigo!


Em tempo: hoje liguei para a secretaria da escola e conversei com uma simpática funcionária sobre eu ter encontrado este livrinho há poucos quilômetros dali e sugeri que ela avisasse alguém ou ela mesmo fosse até a feirinha do shopping e adquirisse o "novo" livro do patrono da instituição. Será que foram? Espero que sim. Frase dela: "Puxa, que bacana. Mas é Sílvio com y, né?". Com certeza, caríssima, se depender de mim, com y até a eternidade.




25 de setembro de 2021

Otacílio D'Assunção (1954-2021)


Que ano difícil! Fico sabendo hoje pela minha amiga Ada que o grande Otacílio D'Assunção, um dos maiores editores dos quadrinhos brasileiros, foi encontrado morto em seu apartamento no Rio. A sua passagem aos 67 anos de idade deixa um vácuo enorme no meio editorial, não só pela sua importante e antológica gestão como editor na Vecchi nos anos 70 e início dos 80, mas porque ele nunca deixou de trabalhar com os quadrinhos, seja em editoração, reportagem, pesquisa, tradução, projetos com personagens próprios, etc., já há algum tempo com sua própria empresa. Que ele foi "O Editor da MAD", ninguém tem dúvida: em 34 anos, na Vecchi, na Record, na Mythos e por pouco tempo na Panini (mais de 300 edições ao todo), ele  moldou a "cara" da publicação americana em sua versão nacional e fez a revista estourar em vendas. Graças a ele também, dezenas de desenhistas puderam ter a chance de publicar pela primeira vez em suas páginas (e ele mesmo, no sucesso "Relatório Ota"). Mas ser chamado só de "o editor de Mad" o irritava bastante, e ele tinha razão em se aborrecer, afinal, desde que começou como estagiário na Ebal, em 1970, sua participação nos bastidores sempre fez a diferença para muitos lançamentos em bancas, seja em mudanças editoriais ou estratégias sutis que surtiram um efeito muito significativo. Formado em jornalismo, fez história na Editora Vecchi, não só com MAD, mas com lançamentos surpreendentes que mexeram com o mercado, como revistas de terror que trouxeram de volta à ativa muitos desenhistas "clássicos" do terror nacional dos anos 60, além de - como sempre em seu trabalho - revelar novos valores das HQs nacionais. Na editora, trabalhou com todas as revistas em quadrinhos da casa, de 1974 a 1981, entre elas, Spektro, Histórias do Além, Sobrenatural, Pesadelo, Tex (não no início da publicação), Arquibaldo e sua Turma (com a turma do Archie), Pimentinha, Ken Parker, Eureka (uma das melhores revistas Mix de tiras lançadas no Brasil), Gasparzinho, Brasinha, Alakazam, Mistério- Jacques Douglas, Os Duendes Strunfs, Zagor, Histórias do Faroeste, Comanche, Chacal, Chet, Diabolik, Labareda, Gansola, Luísa, a Boa Bruxinha, Lelo, entre outras. Em seguida, na Record, continuou com o bom nível, sempre em paralelo à revista Mad, que continuava no topo e com mais artistas nacionais ainda. Na editora, lançou vários personagens da Bonelli, assumiu a revista do Recruta Zero (inclusive colaborando com enredos), reiniciou a coleção de Asterix, lançou no Brasil os irmãos Hernandez (Love & Rockets, Locas e Crônicas de Palomar) editou uma edição especial de Carlos Estêvão, uma maxi-série do personagem Judas e uma muito bem feita coleção de Crypta do Terror, com capa de Carlos Chagas e clássico material da EC Comics. Foi na Record que lançou o livro "O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro", depois de um intenso período de pesquisa sobre os "catecismos", revistinhas eróticas artesanais que eram uma febre nas décadas de 50/60. Na sequência de sua carreira, teve ótima passagem pelas editora Ediouro, com lançamentos de revistas mensais e uma retomada de histórias de terror nacionais (Coleção Assombração). Nos últimos tempos, foi responsável por edições de luxo de personagens clássicos na Ediouro/Pixel (Fantasma, Mandrake, Recruta Zero, Luluzinha, Popeye) e trabalhos pontuais de editoração, lettering e tradução para várias editoras. Em sua longa carreira, sempre manteve viva suas atividades como autor. Logo no início da Vecchi, lançou três números da revista Biruta pela Roval/Gorrión, com personagens próprios. Na própria Vecchi, foi coautor dos personagens Chet e Chacal e fez também roteiros de terror (anos depois, sairiam alguns em Calafrio da D-Art, além do especial "Hotel Nicanor", com desenhos de Flavio Colin, que sairá compilado em álbum ainda este ano). Entre os anos 70 e 90 participou de inúmeras revistas independentes ou com tiragens mínimas e em tiras, lançou Idi-Otas e Don Ináfio (no JB e também na MAD-Mythos). A Garota Bipolar surgiu na metade da década passada e depois de fazer sucesso na internet ( em sites como Colecionadores de HQs e página própria - em 2015/6 virou e-book e edição impressa), ganhou edição caprichada com campanha no Catarse em 2020 pela Tai. Vale mencionar também sua volta à EBAL entre 1983 e 1984, pouco mencionada, onde lançou publicações louváveis com Tarzan, Homem Borracha, relançou a Cinemin, e soltou a edição comemorativa de 50 anos do Suplemento Juvenil. A mesma Ebal que o colocou desenhado como anfitrião na edição especial "Chamada Geral - Epopeia", em 1970 - um garoto que já sabia muito de quadrinhos entre feras do traço. Suas contribuições como pesquisador também devem ser lembradas, seja em livros importantes (como a edição do centenário de O Tico-Tico, com vários autores) como em sua inesquecível coluna de quadrinhos no JB, uma das melhores sobre o tema. Eu sou muito privilegiado por ter conhecido o Ota nas redes e ter trocado muitas figurinhas sobre quadrinhos desde o começo deste século e ter a honra de participar do seu grupo fechado de pesquisas. Quem o conheceu ao vivo, guarda sua generosidade, seu desapego e sua fama de anfitrião no Rio - hospedou muitos artistas em passagem pela cidade, em seus vários endereços desde os anos 70 (no bairro Santa Teresa, no centro e na Tijuca) e compartilhou seus convescotes nas calçadas (e as preferidas mesas do Bibi). Quem viu sua vasta coleção (sempre empilhada em montanhas surrealistas) ficou de queixo caído, visto suas edições raríssimas em meio ao caos. Mesmo que, com seu jeito "a flor da pele", ele tenha brigado com meio mundo do mercado, a comoção pela sua morte foi unânime - entre grandes afetos e desafetos, Ota era sempre muito respeitado e admirado. Otacílio Costa D'Assunção Barros, que tentou até ser vereador em 1988, agora segue para outras missões quadrinísticas, e quando a gente menos esperar, vai virar documentário, livro e graphic-novel. O genioso e genial Ota merece.


2 de setembro de 2021

Pelão (1943-2021)


Fiquei sabendo da morte do Pelão (João Carlos Botezelli - ), aos 78 anos de idade, por uma postagem do Gonçalo Jr., que o entrevistou o ano passado para seu livro sobre o Jacob do Bandolim. Na entrevista, ele viu pessoalmente o estado delicado de saúde de Pelão, que estava praticamente em uma UTI dentro de sua casa (e mesmo assim, conversou com ele por horas, acendendo um cigarro atrás do outro). Em 2011, tive a honra de conhecê-lo, quando fui ao seu apartamento com um amigo, o jornalista Marcelo Mazuras, para uma entrevista sobre seus projetos dentro da gravadora Marcus Pereira. Foi uma conversa agradável, franca e muito produtiva, com muito café, fumaça (eu tinha parado de fumar, mas o Mazuras e ele fumavam um atrás do outro) e acessos de tosse da parte do Pelão que me deixaram preocupados com sua saúde na época. Infelizmente o projeto - que era sobre a gravadora Marcus Pereira - não vingou e essa gravação com o Pelão acabou extraviando. Ainda assim, consegui passar para o papel na época o comecinho dessa conversa. Transcrevo esse trecho na íntegra, abaixo, para a posteridade. Um salve ao Pelão, um dos mais autênticos produtores musicais que esse nosso Brasil viu, responsável por muita gente boa gravar o primeiro LP (Cartola, Adoniran entre eles), por gravações antológicas na Marcus Pereira e outras façanhas mais.

MMass- Você fez trabalhos essenciais na gravadora Marcus Pereira, até hoje lembrados, a começar pelo disco do Cartola.
Pelão - Eu trabalhei o tempo suficiente na Marcus Pereira, que deu pra fazer alguns trabalhos. Deixei muitos projetos lá, que infelizmente não souberam fazer.
MMass- Da série de discos regionais da gravadora, você chegou a colaborar em quase todos?
Pelão – Alguns. Mapeamento fiz só o Centro-Oeste e o Sudeste, que fui produzir junto com o Theo (Nota: Theo de Barros, compositor e violonista, coautor de Disparada junto com Geraldo Vandré). Foi o Theo que me indicou. A minha parte, eu escolhia, fazia, e não tinha “não”. Pegava o carro – um Fusquinha – e saía por aí, com o gravador...
MMass – Como era a gravação em si? Era in loco?
MMaz – ...gravava na raça mesmo? Chegava lá na casa do violeiro, “toca aí”, “vambora”?...
Pelão – O melhor gravador que tinha na época era um Werzinho, mono. O Wer era legal porque foi um gravador de guerra, né? Servia pra dar porrada nos outros...
MMass – rs...guerra mesmo!
MMaz – rs...por causa do peso dele?
Pelão – O peso, o corpo pra proteger ele...então era legal pra externa.
MMass –Na linha de frente de batalha era você...e quem mais na equipe nessa época do mapeamento?
Pelão – Externa era eu...
MMass – O Theo não ia junto?
Pelão – Não, ele só emprestava o Fusquinha.
MMaz – E você gravava no interior das casas dos caras?
Pelão – Podia ser na casa ou em campo aberto mesmo. Na casa dos caras a gente pendurava os cobertores na parede pra não “bater” o som. Pra tentar fazer uma coisa melhor. O importante era registrar aquilo.
MMaz – E quem achava esse pessoal, aquele que dava as coordenadas: “tem um fulano ali, na cidade tal...”.
Pelão – Teve alguns que fui eu que descobri, porque fui atrás de um e achei outro. Às vezes falavam que não tinha ninguém na região. Eu insistia que tinha. Procurava as pessoas que eu conhecia na cidade que eram importantes, que conheciam o folclore, as músicas regionais. E como eu tinha sido da TV Tupi, isso sempre ajudava. O sujeito já conhecia ou tinha ouvido falar...
MMass – E nessas gravações vieram artistas mais conhecidos como o Renato Teixeira, né?
Pelão – Isso já foi em estúdio. O Renato tem aquela pesquisa do Chico Noca. Ele ia muito pra Ubatuba e conhecia o Chico Noca. Foi um projeto fantástico que deu um pouco de trabalho. Eu fui lá, gravei, trouxe a gravação e o Theo acrescentou o instrumental em cima. Ficou lindo. Leve. Só o Theo sabe fazer isso – é brasileiro pra cacete. Sem roubar nada.
MMaz – Então você ia lá, com o gravador de guerra, capturava os instrumentos...geralmente era o cara sozinho tocando ou ele trazia o pessoal dele?
Pelão – Eles sempre traziam os agregados. Eu gravei uma catira, que captei em Nova Odessa, que o João Biarini, que era um grande pesquisador – companheiro de Partido Comunista – falou; ‘Vai embora que aqui não tem catira nenhuma”. E eu sabia que tinha, mas não ia brigar com o cara. “Tá legal, João, obrigado”. E eu descobri um grupo de catireiro fantástico! E eu gravei os caras na casa deles. Nessa ocasião eu não tinha auto falante, só fones de ouvido, e o grupo de catira tinha doze pessoas, mais o pessoal lá fora, e eu tinha que pegar o canto deles e o sapateado. No fim deu tudo direitinho. O duro é que no fim todo mundo o queria escutar uma vez ou duas. Eu falava: “Não pode. Se eu passar mais uma vez, apaga”. Aí explicava o contrato, eles assinavam pra receber...tudo direitinho e documentado.