Paulo Moura faleceu ontem e eu nem sabia que ele estava doente. Talvez porque a imagem que eu sempre tive dele era de vitalidade, vigor, super poder. Um super herói do sax e da clarineta, que podia estar de manhã gravando, à tarde participando de algum ensaio de orquestra e à noite, soprando magia em alguma gafieira de subúrbio ou recebendo prêmio importante em festival portentoso. E sempre foi assim. Desde os anos 40, quando começou a estudar música para fugir da profissão de alfaiate que o irmão mais velho lhe impingia. Bandeou pro lado do pai e dos outros irmãos, todos músicos. Em 1944 já tocava com o pai, Pedro Moura, em bailes populares de São José do Rio Preto, sua cidade natal. No ano seguinte, chega ao Rio e cai de cabeça nos estudos musicais e nos primeiros bicos como músico em gafieiras e inferninhos cariocas, até desenbocar no começo dos 50 nas grandes orquestras, primeiro na de Oswaldo Borba na Rádio Globo, e pouco depois transferindo-se para a TV Tupi com Zacharias e Sua Orquestra. Bom, a partir daí, super Paulo Moura dá asas a sua versatilidade e começa a se meter em vários projetos ao mesmo tempo. Grava com grandes músicos e cantores na EMI e na RCA Victor, entra para a cavalaria do exército - direto para a banda de música -, diploma-se como clarinetista na Escola Nacional de Música, toca com Leonard Berstein, e logo na sequência conhece Ary Barroso e sua fina orquestra, com quem viaja para o México. Ainda no início dos 50, enquanto excursiona com Ary Barroso, Paulo viaja à Nova York com o trompetista Julio Barbosa e ao tentar localizar seu ídolo Charlie Parker, acaba fazendo amizade com Dizzy Gillespie. Nessa época (e vejam só, ainda estamos em 1953), ensaia em sua casa com músicos considerados no futuro, precursores do que viria a ser a bossa nova, como João Donato, seu amigo desde sempre, Bebeto do Tamba Trio, e o "rapaz de bem" Johnny Alf, que visitava a turma para mostrar algumas de suas composições. Continua se aperfeiçoando nos estudos e perfilando sessions night para o pão do mês. Em 1956, finalmente um disco próprio: ao tomar conhecimento da gravação de Zé da Gaita para Moto Perpétuo de Paganini, se vira do avesso para executá-la na clarineta, em exaustivos ensaios e técnicas de respiração. O resultado da corajosa versão sai em um 78 rotações pela CBS que vira sensação nos programas de TV da época. Por esses tempos, organiza sua primeira orquestra, que chega a tocar semanalmente na Rádio JB e grava um 33 pela Sinter, mas logo Paulo se fixa na Rádio Nacional e aflora outra faceta de sua carreira que o seguiria dali por diante e lhe traria prestígio: a de arranjador e orquestrador, azeitada por preciosos ensinamentos de Moacir Santos e Maestro Cipó. Outro feito de herói, em pleno 1958 da guerra fria: acompanhar os cantores Nora Ney, Jorge Goulart, Dolores Duran, Maria Helena Raposo em excursão por território soviético. De quebra, na volta, grava o LP Sweet Sax, com standards americanos. No ano seguinte, entra para a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio, espaço que só iria deixar em 1978. Depois de 2 LPs, um com obras de Radamés Gnatalli e outro com tangos e boleros, Paulo adentra a bossa nova pela porta da frente, ao integrar o Bossa Rio, que iria participar do famoso festival da bossa no Carnegie Hall em 1964. Primeiro conjunto instrumental do movimento a incorporar sopros, o Bossa Trio surgiu das improvisações de Moura com Sérgio Mendes e o baixista Otávio Bailly no Beco das Garrafas e foi com essa formação que gravou o LP
Cannonball Adderley e o Bossa Rio, com o conceituado saxofonista, no mesmo ano do Carnegie. Outra contribuição essencial sua para a bossa foi a participação como arranjador de quatro faixas do LP Edison Machado é samba novo, um disco seminal para a música instrumental brasileira. No decorrer da década, se aprimora como arranjador e lidera formações cruciais no período: Orquestra Popular, Paulo Moura e Quarteto ( com Wagner Tiso, que começava aqui uma longa parceria, Luis Alves e Paschoal Meirelles) e Hepteto Paulo Moura, os dois últimos lançando uma sequência fundamental de LPs de bossa/jazz. Nos anos 70, não só continua múltiplo, como surpreende. O famoso Milagre dos Peixes Ao Vivo de Milton Nascimento, gravado no Teatro João Caetano no Rio, tem sua batuta à frente da orquestra. Simultaneamente, a música Mandrake, feita com Wagner Tiso, faz inusitado sucesso nas rádios cariocas ( por ser tema instrumental). Em 1976, surpreende o mundo da música com o LP Confusão Urbana Suburbana e Rural com produção de Martinho da Vila, que vira clássico instantâneo ao unir percussão afro, sopro e chôro em temas próprios ou em parcerias com Martinho e Tiso. Com esse sucesso, Paulo Moura intensificou suas viagens internacionais, incluindo África e Ásia. Nesta fase, incluiu duas novas áreas em seu repertório: trilha ( como a que fez para Plantão de Polícia, na Globo) e atuação ( pequenas participações como ator no cinema). Entre meados dos 70 e toda a década seguinte, Moura mergulhou em duas ressurreições: a do Chôro, onde se tornou um dos líderes da retomada e o da Gafieira, a partir de uma descompromissada apresentação no Gafieira Estudantina, no Rio, que iria estender-se por oito meses e mudaria o foco de sua carreira. Os lançamentos vêm em torrente: Consertão (1982), com Elomar, Arthur Moreira Lima e Heraldo do Monte, belo encontro erudito/popular barroco, Mistura e manda (1983), uma retomada do espírito do Confusão Suburbana, e como tal , sucesso internacional, Clara Sverner e Paulo Moura (1983), primeiro projeto de muitos com Clara, Encontro (1984), com Clara Sverner (piano), Turíbio Santos (violão) e Olívia Byington (voz), Gafieira Etc & Tal (1986), Vou vivendo (1986), de novo com Clara Sverner, Quarteto Negro (1987), com Zezé Motta, Djalma Correia e Jorge Degas, cujo repertório foi tocado no Olympia de Paris e Clara Sverner e Paulo Moura interpretam Pixinguinha, de 1988 ( olha ela aí outra vez). Em 1992, mais um disco a constar nas listas tops da música instrumental internacional: Dois Irmãos, gravado com Raphael Rabello, pela Caju Music, que logo lhe faz ser agraciado com o Prêmio Sharp de Melhor Instrumentista Popular do ano e que iria se repetir em 1999, com o CD Pixinguinha: Paulo Moura e os Batutas, nas categorias Melhor Grupo Instrumental e Melhor Solista, trabalho que também lhe daria o Grammy Latino. O novo século entrou e Paulo Moura continuou com lançamentos de fôlego, do alto de seus setenta e alguns anos de janela: K-Ximblues, homenagem ao seu ídolo do sax K-Ximbinho (2001), o ao vivo Paulo Moura visita Gershwin & Jobim (2001), Estação Leopoldina, incursão pelos sambas dos subúrbios ligados pela rede Leopoldina de trens ( indicado ao Grammy de 2003), a inevitável parceria de Paulo Moura com o precoce Yamandu Costa em El Negro Del Blanco, de 2004, que lhe garantiu o Prêmio Tim de Melhor Solista Popular. Em 2006, o CD Dois Panos para Manga, concebido em uma reunião na casa do diretor de TV Mario Manga, traz surpresas e comoção no encontro de dois gênios. Paulo Moura reune-se ao amigo de adolescência João Donato em um sutil passeio pelo repertorio do Sinatra Farney Fã Club, aquele mesmo clubinho em que ambos desfiavam sons que se incorporariam no DNA da bossa nova. No ano seguinte, mais queixos caídos e ouvidos atônitos na audiência, com o CD Samba de Latada, trazendo sons do sertão pernambucano. Já o CD Pra Cá e pra Lá, de 2008, é mais um indicado ao Grammy. No ano passado, 76 anos nos ombros e fôlego de menino, excursionou para a Tunísia e Equador, com grande repercussão. No meio do ano, ainda guardou forças para o CD AfroBossaNova, em parceria com o guitarrista baiano Armandinho, e mais uma vez o calejado instrumentista mostrou que jazz, samba e batuque podem dar um suculento caldo. Paulo Moura, mexeu, remexeu, temperou e misturou a música brasileira por seis décadas. Muitos tentam essa mistura, mas no caso específico aqui, há um componente único: o super-sopro.
(com informações do site Paulo Moura e do Dicionário Cravo Albin de MPB)
Paulo Moura em ação, em shows e documentário:
Nenhum comentário:
Postar um comentário