Ontem foi uma noite especialmente mágica: recebi convite do diretor Eduardo Ades para assistir a estreia do filme "Torquato Neto: Todas as Horas do Fim" em São Paulo, dentro da Mostra de Cinema que rola até o início de novembro em toda a cidade. A sessão era no Cinema Itaú do Shopping Frei Caneca e fui com muita expectativa junto à family assistir ao documentário sobre a vida e obra do enigmático poeta piauiense, peça chave do tropicalismo e da contracultura da virada dos 60 para os 70. A direção e roteiro tem a mão dos diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando e traz uma película muito bem pesquisada mas que não caiu propositalmente no caminho da biografia óbvia e já tão documentada e comentada. É um filme de sensações principalmente, com trechos de filmes famosos ( Macunaíma, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Bandido da Luz Vermelha, entre outros, além dos filmes mais obscuros e os ligados à Torquato, principalmente "Nosferato no Brasil" de Ivan Cardoso, que teve o poeta como protagonista) cenas reais da época ( ruas de Copacabana, madrugada carioca, Dunas da "Gal", exílio dos tropicalistas) e momentos cruciais da música e da política ( programas e festivais na TV, passeata dos Cem Mil, festa do disco Tropicália na Estudantina, cenas violentas da repressão militar, programa do Chacrinha). Digo "sensações" porque optou-se pelo lado poético de Torquato, pois como um dos entrevistados frisou bem em seu depoimento, ele sempre botou poesia onde passou - música, cinema, jornalismo, literatura, arte marginal. E o que se percebe durante as quase 1 hora e meia de filme é a intervenção explícita de Torquato em todas as cenas expostas, seja em áudio na primeira pessoa ( a maioria feita por dois atores) seja em aparições reais ( fotos e cenas raras do poeta - uma que chama muita atenção é ele na janelinha de um jato Varig acenando para fora antes de zarpar para Londres). Mesmo as imagens da época em que não está de corpo presente trazem a impressão de que seu olhar perscruta tudo ao redor. Embrulhando tudo isto, sua poesia e letra escorre na tela, em trechos, manuscritos, declamações e interpretações emocionantes das suas letras em música - desde as bossas singelas e canções de lembranças nordestinas do início de carreira, passando para as composições ditas tropicalistas e parcerias ecléticas ( com Edu Lobo - a magnífica Pra Dizer Adeus - , Luiz Melodia, Jards Macalé, Renato Piau, entre outros). Gilberto Gil foi o parceiro mais constante, pelo menos até o rompimento da parceria, que se deu no momento do exílio dos baianos em 1969 - e que segundo depoimentos de Gil e Caetano aconteceu sem nenhuma briga formal. A veia jornalística surge de leve - apenas sua coluna Geléia Geral aparece com mais destaque - prevalecendo a imagem mais cinematográfica ( Nosferato percorre toda a parte final do documentário, justamente a fase em que Torquato é internado mais vezes, luta com o alcoolismo e rompe com amizades e projetos) e contracultural ( cenas raras com seu amigo Helio Oiticica e imagens e transcrição de carta sobre a revista literária Navilouca, de número único, produzida junto dos amigos poetas concretistas). No final da sessão, depois dos letreiros tendo ao fundo "Go Back" ( letra de Torquato e música de Sergio Britto gravada pelos Titãs) rolou uma rápido bate-papo com os diretores e ficou ainda mais clara a proposta da produção: uma pessoa na plateia sentiu falta no filme do suposto "affair" entre Torquato e Caetano, e a resposta dada foi que essa suposição não ficou registrada/marcada na obra de Torquato, ficando, portanto, à revelia do enredo, que preferiu focar no romance/casamento com Ana, parceira efetiva/afetiva em sua vida e que lhe deu o filho único Thiago ( que estava presente na plateia). Outro assunto já batido que acabou de fora da edição final foi "Cajuína", música escrita por Caetano quando se encontrou com o pai de Torquato algum tempo depois de sua morte. O suicídio no dia de seu aniversário de 28 anos é tratado com sutileza e cuidado durante toda a película - o que não quer dizer que foi minimizado, pelo contrário. Depoimentos diversos citam essa tragédia pessoal, alguns lembrando que o tema morte era sempre comentado por Torquato - que de uma pessoa doce e contida, podia se transformar depois de doses a mais em um sujeito agitado, agressivo e melancólico. O cineasta Ivan Cardoso, sempre espirituoso, cita que Torquato foi um drácula legítimo ( Nosferato de novo), mesmo quer insistisse em usar sandálias alparcatas hippies por baixo de seu traje sinistro, e que como tal, pode reaparecer a qualquer momento. Torquato reparece sim - em canções póstumas, em homenagens diversas, em matérias especiais, em livro - Toninho Vaz, que acabou de finalizar a biografia de Zé Rodrix - fez uma obra excelente sobre ele-, e agora nesse belo filme, que longe de ser uma biografia completa, exala poesia e vida por todos os seus poros, sem esconder as tragédias, mas exaltando a arte transcendental e contracultural de Torquato Neto.
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