O saudoso Cartola, gênio intuitivo da nossa música, virou filme em 2006, e ainda por cima, filme bem falado por público e crítica. E não deveria ser diferente. A sua vida foi tão conturbada e movimentada, que daria pra se fazer uma penca de filmes bons, todos com doses cavalares de drama, comédia, aventura e sobremaneira, amor. Cartola nasceu Angenor é só foi descobrir que não era Agenor nos anos 60. Nasceu pobre no subúrbio, em 1908, e já na década seguinte a família se mudou para o morro, a sua amada Mangueira, que na época contava com pouco mais de 50 barracos. Com muito custo consegue terminar o primário, mas aos 15 anos, com a morte da mãe, se afasta ( ou é afastado) da família e cai na boêmia. Ainda na juventude se mostra bamba no samba e no copo e se faz respeitado pela malandragem local. Faz bicos em tipografias e na construção civil, e é na obra que conquista o apelido para a vida inteira: para evitar que o cimento e o cal caísse em seu cabelo, usava um chapéu alto, quase uma cartola. Antes dos 20, adoecido pelas noitadas no meretrício, é amparado pela vizinha Deolinda, casada e com uma filha, que acaba acolhendo-o em casa. O marido, Astolfo não agüenta a situação e sai de casa, fazendo de Cartola um chefe de família precoce. Em 1925 funda com Carlos Cachaça, amigo pra vida toda e parceiro mais constante, e outros sambistas como Massú e Zé Espinguela, o Bloco dos Arengueiros, que depois de se unir a outros blocos da comunidade, vira escola de samba em 1928, a segunda do Rio de Janeiro, com o pomposo nome G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira. Tanto o nome como as inusitadas cores verde e rosa foram escolha de Cartola. A partir daí, se tornou o principal compositor da escola, que até 1940 sagrou-se quatro vezes campeã do Carnaval do Rio. Além do seu prestígio dentro da verde e rosa, lançou seus sambas para fora do morro, primeiro em 1931, com a venda de Que Infeliz Sorte para Mario Reis, que fez grande sucesso nas rádios ao ser repassada para Francisco Alves, e em seguida, com outras criações, nas vozes de Araci de Almeida, Carmen Miranda, Mário Reis e Sílvio Caldas (o último,também parceiro). Com outro parceiro, Noel Rosa, compôs muitos sambas que se perderam nas noites de bebedeiras de ambos e nunca foram gravados – a exceção foi o samba ‘Qual foi o mal que te fiz’, gravado por Francisco Alves e creditado só ao mangueirense. Grande testemunha dessa parceria foi Deolinda, que deu muito banho no reincidente Noel, que vivia encharcando com seu companheiro e acabava pousando por ali. Noel logo faleceu, os sambas pingavam aqui e ali, mas o dinheiro era sempre curto e Cartola precisava de um emprego fixo. Na virada da década cria com Paulo da Portela um programa de rádio bem diferenciado, onde os ouvintes eram apresentados a sambas inéditos da dupla e podiam batizá-los. Também são dessa época as famosas gravações do maestro Leopoldo Stokowski no navio S.S.Uruguay, atracado no Rio em uma daquelas viagens da “boa vizinhança” EUA-Brasil. O maestro juntou a nata da música popular brasileira da época (Pixinguinha, Donga, João da Baiana, componentes da Mangueira, entre outros) e as execuções captadas na ocasião saíram posteriormente nos EUA em álbuns de 78 rpm. Algumas dessas faixas chegaram a sair no Brasil décadas depois em tiragem limitada através do Museu Villa-Lobos, mas logo voltaram a ser itens raríssimos como de início (para conhecer toda a saga, leiam as heróicas reportagens de Daniella Thompson feitas em 2005 http://daniellathompson.com/Texts/Stokowski/Cacando_Stokowski.htm .Cartola, claro, estava entre os escolhido e foi elogiado pessoalmente por Heitor Villa-Lobos, que ajudara o músico americano, mas dinheiro que é bom, never( na verdade, o compositor chegou a receber, um ano e meio depois, um pagamento que lhe rendeu três maços de cigarros vagabundos). Em 1941, logo depois de algumas apresentações com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres em São Paulo, Cartola simplesmente desaparece de cena. Por 15 anos, escafedeu-se do mapa! Depoimentos posteriores do compositor dão algumas pistas desse período, mas propositadamente o mantém na obscuridade: ‘coisas pesadas’ e ‘me envolvi com uma mulher’ são os termos usados. O que se sabe é que até 1946, ficou à beira da morte por conta de uma meningite e enviuvou-se de Deolinda. O fato é que Cartola sumiu, e do esconderijo em que estava, ainda pôde ouvir ou saber da vitória de sua Mangueira em 1948, com um samba seu e de Carlos Cachaça, “Vale do São Francisco”. Muitos achavam que o sambista tinha batido as botas, até que em meados dos anos 50, foi ‘encontrado’ pelo cronista Stanislaw Ponte Preta, lavando carros em um condomínio de Ipanema. Logo em seguida, Sérgio levou-o de volta para a rádio e Jota Efegê conseguiu-lhe um emprego no Diário Carioca. Outros como o cartunista Lan e o crítico e especialista Lúcio Rangel também abriram-lhe portas. Cartola voltava à vida. No fim da década, já enamorado de Eusébia Silva do Nascimento, a Zica,consegue algumas pontas em filmes, como no famoso Orfeu Negro de 1959 (veja aqui a aparição do casal nos 5min55: http://www.youtube.com/watch?v=ZtDNtvAJOC0 ).
Nos anos 60, volta a falar com o pai, reaproxima-se das composições e abre a porta de sua casa para os diversos amigos sambistas e boêmios. Nestas reuniões, onde a boa comida de Zica e a roda de samba imperavam, brota-se a idéia de um restaurante, que viria a se tornar realidade em 1964, com a inauguração do Zicartola, em 1964, na Rua da Carioca. Logo a casa se torna famosa, tanto pelos quitutes de Zica, como pela reunião da melhor música feita no morro e na cidade. Sambistas veteranos encontravam-se ali com a nova geração: Nara Leão ( que gravaria Cartola no show Opinião), Zé Keti, presença constante no palco ( e que também participaria do Opinião), o jovem Paulinho da Viola ( um dos primeiros da geração 60 a gravar Cartola), Nélson Cavaquinho e Hermínio Bello de Carvalho, entre outros. A casa não durou muito, mas ficou pra sempre cravada na história do Rio do Janeiro. Cartola prosseguiu, ainda pobre, mas finalmente com casa própria e emprego fixo (como contínuo) e redescoberto pela nova geração. A sua maior frustração era não ter um disco próprio. Essa lacuna só foi preenchida em 1974, quando o produtor Pelão ( João Carlos Botezelli), que já havia feito milagre no ano anterior ao produzir o disco de Nelson Cavaquinho, conseguiu convencer Aloísio Falcão, da gravadora Marcus Pereira, a fazer um disco solo do veterano compositor. Depois de algumas resistências internas, o disco não só saiu, como foi aclamado pela crítica e virou clássico no ato. Dois anos depois, repetiu-se a dose e o sucesso foi ainda maior: duas das músicas mais conhecidas de Cartola entraram no vinil de 76, ‘As Rosas Não Falam’ e ‘O Mundo é um Moinho’. A fase era tão boa, que Cartola finalmente estreou seu primeiro show individual, um sucesso que ficou em cartaz por meses.
A repercussão dos trabalhos na Marcus Pereira fez com que o compositor assinasse contrato com a major RCA Victor, que providenciou a produção de Sergio Cabral para o próximo disco, outro primor. Aos 70 anos, engatilhou ainda um quarto disco solo, enquanto finalmente tinha um retorno financeiro e um conforto merecedor junto à Zica. Mas a saúde começava a cobrar os excessos de uma vida toda. Cartola ainda fez alguns shows e recebeu merecidas homenagens, até que em novembro de 1980, ao lado de sua amada Zica, despediu-se da vida e entrou para sempre na história da música brasileira. Um filme é pouco para Cartola. Que se façam outros. Que venham outros livros, que se divulgue o site ( abaixo). Cartola, sábio do povo, poeta intuitivo, melodista nato, merece.
*Site: http://www.cartola.org.br/
Nos anos 60, volta a falar com o pai, reaproxima-se das composições e abre a porta de sua casa para os diversos amigos sambistas e boêmios. Nestas reuniões, onde a boa comida de Zica e a roda de samba imperavam, brota-se a idéia de um restaurante, que viria a se tornar realidade em 1964, com a inauguração do Zicartola, em 1964, na Rua da Carioca. Logo a casa se torna famosa, tanto pelos quitutes de Zica, como pela reunião da melhor música feita no morro e na cidade. Sambistas veteranos encontravam-se ali com a nova geração: Nara Leão ( que gravaria Cartola no show Opinião), Zé Keti, presença constante no palco ( e que também participaria do Opinião), o jovem Paulinho da Viola ( um dos primeiros da geração 60 a gravar Cartola), Nélson Cavaquinho e Hermínio Bello de Carvalho, entre outros. A casa não durou muito, mas ficou pra sempre cravada na história do Rio do Janeiro. Cartola prosseguiu, ainda pobre, mas finalmente com casa própria e emprego fixo (como contínuo) e redescoberto pela nova geração. A sua maior frustração era não ter um disco próprio. Essa lacuna só foi preenchida em 1974, quando o produtor Pelão ( João Carlos Botezelli), que já havia feito milagre no ano anterior ao produzir o disco de Nelson Cavaquinho, conseguiu convencer Aloísio Falcão, da gravadora Marcus Pereira, a fazer um disco solo do veterano compositor. Depois de algumas resistências internas, o disco não só saiu, como foi aclamado pela crítica e virou clássico no ato. Dois anos depois, repetiu-se a dose e o sucesso foi ainda maior: duas das músicas mais conhecidas de Cartola entraram no vinil de 76, ‘As Rosas Não Falam’ e ‘O Mundo é um Moinho’. A fase era tão boa, que Cartola finalmente estreou seu primeiro show individual, um sucesso que ficou em cartaz por meses.
A repercussão dos trabalhos na Marcus Pereira fez com que o compositor assinasse contrato com a major RCA Victor, que providenciou a produção de Sergio Cabral para o próximo disco, outro primor. Aos 70 anos, engatilhou ainda um quarto disco solo, enquanto finalmente tinha um retorno financeiro e um conforto merecedor junto à Zica. Mas a saúde começava a cobrar os excessos de uma vida toda. Cartola ainda fez alguns shows e recebeu merecidas homenagens, até que em novembro de 1980, ao lado de sua amada Zica, despediu-se da vida e entrou para sempre na história da música brasileira. Um filme é pouco para Cartola. Que se façam outros. Que venham outros livros, que se divulgue o site ( abaixo). Cartola, sábio do povo, poeta intuitivo, melodista nato, merece.
*Site: http://www.cartola.org.br/
*Com o pai (trecho do filme Cartola-2006): http://www.youtube.com/watch?v=acLkgRX28D8
*Com Paulinho da Viola (trecho do filme Cartola): http://www.youtube.com/watch?v=26wDkehacic&feature=related
*Ensaio(1974): http://www.youtube.com/watch?v=_bBid7i34XI&feature=related
Olá,
ResponderExcluirAchei essa postagem enquanto procurava conteúdos sobre o Cartola. Interessante a postagem!
Abraços,
Lu Oliveira
www.luoliveiraoficial.com.br
Oi, Lu, obrigado pela visita. Que bom que gostou. A sua música é muito interessante também. Parabéns.
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