7 de dezembro de 2016

Ferreira Gullar (1930-2016)


O poeta partiu. Ferreira Gullar, um dos maiores escritores da língua portuguesa e um dos grandes da nossa poesia, não resistiu a uma pneumonia e se foi aos 86 anos no último dia 04. Sempre contestador e crítico, começou a poetizar ainda na adolescência no Maranhão. Tornou-se concreto um pouco depois mas logo rompeu com esse grupo, pois os achava muito técnicos e "geométricos". Funda o neoconcretismo com Ligya Clark e Helio Oiticica, e além de escrever o manifesto do movimento, escreve também uma obra fundamental ligado a ele: "Teoria do Não-Objeto". Uma das suas obras mais contundentes do período, "Poema enterrado", se valia de uma "instalação", onde ao se descer para o subsolo da exposição, encontrava-se um cubo vermelho, dentro dele, um cubo verde, e dentro deste, um cubo branco, onde podia-se ler a palavra "rejuvenesça". Com a ditadura, torna-se cada vez mais politizado e lança poemas e textos ligados ao social. Filiado do partidão, acaba sendo preso e cai na clandestinidade. Foge do país e passa um longo período fora - Moscou, Lima, Santiago, Buenos Aires - voltando em 1977 ao Brasil. Ainda em Buenos Aires lança em 1976 sua obra-prima, "Poema Sujo", com mais de 100 páginas e traduzida para o mundo todo. Na volta ao Brasil é preso, torturado, e só sai da cadeia por pressão internacional. Ao ficar livre começa a escrever para a televisão ( Carga Pesada tinha texto seu) e para o teatro. Escreve para jornais e lança livros de ensaios críticos, além da poesia, sempre presente. Gullar sempre escreveu sobre tudo, na verdade - basta ver sua extensa e diversificada obra onde até cordel e literatura infantil tinham vez. Em 2014, finalmente entra para a Academia de Letras. O último livro, "Autobiografia Poética e outros textos", foi lançado neste ano.

Dois poemas do homem:

Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

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